Tire as sandálias – Boletim nº 173

A expressão “tire as sandálias”, na hermenêutica bíblica, pode ser entendida como uma das expressões mais fortes do Antigo Testamento. Ela aparece por primeiro, no episódio da “sarça ardente” onde Moisés ouve uma voz: “Moisés, Moisés… Não te aproximes daqui. Tira as sandálias dos teus pés, porque o lugar em que te encontras é uma terra santa.” (Ex 3:4-5).

Não é fácil, na vida, tirar as sandálias, ou sapatos (botas?). É que quando se está calçado, não se pisa no chão, nas areias da vida e da história. Existe uma sola que se molda aos nossos pés e os isola da realidade, da terra. Com sandálias, há uma zona de conforto na qual os pés se acomodam e quanto mais velho é o sapato e quanto mais longa for a história do fechamento, com correias ou cadarços que dão “segurança”, mais dificuldade se tem para se libertar. Se o conforto é maior, menor é a vontade de ficar descalço, porque quando se está calçado se está armado, protegido, isolado, seguro dos perigos do mundo.

São poucos os que conseguem se despir dos calçados.Libertar-se das sandálias é dizer não para as vontades pessoais onde o epicentro está em nós mesmos. E para que o despojamento possa acontecer, o único remédio, é ouvir a voz, entender a santidade do lugar onde se pisa e obedecer ao chamado para então nu diante do sagrado. Deus está exatamente onde não há ilusões. Está fora das sandálias e apenas sem elas, é que podemos ver a sarça ardente que não se consome.

Somos prisioneiros dos nossos calçados e sentenciados ao falso isolamento da vulnerabilidade da vida. Iludidos, constrói-se casas com muros altos e com uma só porta de entrada, para que os que entrem por ela, rendam-se aos desejos e à identidade de quem mora lá. Cada casa, um catecismo. E os ranchos possuem tramelas. Os Currais possuem cercas, muito embora todos saibam que o “pasto” está lá fora. E bem calçados, seguros, então, bradamos: esta é a minha casa. A porta sou eu.

Nada no mundo é mais inconsistente e frugal que nossos calçados: palácios e templos, túnicas e distintivos, contas bancárias e paixões, cargos e grifes. Tudo é túmulo com epitáfios mentirosos e títulos fantásticos. “Serás pó” (Gn. 3,19). Todo o ser vivo nasce, cresce, envelhece, adoece e morre. Tal é a vida.

Presos à condição de indivíduos distintos e ávidos de poder, nos alienamos e nos distanciamos da própria natureza humana. Quando se tira as sandálias, deixa-se de ser prisioneiro da própria visão de mundo, a qual, muitas vezes, é pura fantasia. Com a falsa visão de que se está protegido, o homem de hoje renuncia a liberdade e a esperança, valores que abrem as portas para o infinito, enquanto os confortantes calçados enclausuram e limitam os caminhos. Quando se está descalço se enfrenta as encruzilhadas que a vida põe e nelas surgem então possibilidades de opção. Já as sandálias dão fantasias.

É somente em contato com a terra e livres dos calçados, que se é capaz de entender o que diz o provérbio chinês: “no final do jogo, tanto o rei quanto o peão, voltam para a mesma caixa”.

Prof. Dr. Mario Antonio Betiato
Teologia PUC PR

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