Espiritualidade – Uma busca – Boletim nº 21 – Julho 2008

O tempo não pode ser alterado pelo homem
ele dá a cada um de nós um começo e um fim.
E isso nos faz questionar o significado que surge “entre”.
Mas se você pode criar alguma coisa que o tempo não pode corroer,
algo que ignore as excentricidades de certas eras ou momentos,
algo verdadeiramente intemporal,
 esta é a última vitória.
T.S.Elliot

 Quarta-feira, 17 horas, passeio no parque vendo as aves daqui para ali, inquietas e serenas. Respiro a liberdade de quem construiu uma vida no afã de ser produtiva. Vôo com os pássaros também eu, inquieta e serena a um só tempo, expirando fundo a ambivalência de sentimentos.

Sexta-feira, 19 horas e não venci a semana com o trabalho pronto. Creio que perderei o prazo do projeto. Prazo… essa lembrança me angustia. Meu olhar atravessa a paisagem usual do escritório e estranho ter hoje mais presente as contradições que nos cercam e delas, talvez não desse conta. Ora uma certeza, ora uma dúvida e a vida nos escapa.

Raciocinamos a aceitação de muitas mudanças, mesmo sem entendê-las. Aliás, produzimos aceitações para situações-surpresa: nem sempre o previsto acontece e o planejado se realiza. Tentamos dominar os acontecimentos num duelo entre o ego e o nosso entorno como marca do amadurecimento e, por isso procuramos dar sentido ao que fazemos, pensamos e sonhamos.

Para aqueles que do alto de mais de meio século de vida contemplam à sua volta, o horizonte pode se apresentar menos nítido neste momento. Não é um problema de vista, nem de ponto de vista, mas uma questão de vida. Descemos do pedestal para conversar, trocar idéias com alguns.

Afastamos a hipótese de um balanço tipo “fiz ou deixei de fazer”. Alguém pergunta à queima roupa se estamos satisfeitos. Digo sim, aliviando dos ombros o peso dos anos. Outro lança um petardo: “acredita em Deus”? Não exito e repito o pensamento a me perseguir: sou eu quem precisa d´Ele, pois Deus não precisa de mim. Espanto na roda pelo confronto de diferentes experiências e um amigo arremata: “na nossa idade descobrimos Deus”. Apego-me a isso e volto para casa remoendo a conversa inconclusa.

É preciso driblar as escanteadas da vida e até enfrentar crises com certa nostalgia de outros tempos, que hoje sabemos não menos difíceis. São tantos os diagnósticos da civilização enrascada no individualismo, sufocamento do planeta, desigualdades sociais crescentes, falta de trabalho numa escala assombrosa, intromissão da artificialidade das máquinas… enfim, problemas de grandes dimensões sem prontas soluções! 

Vejo-me impelida a desafiar a própria aventura e remexo vulcões extintos. Descubro o quanto me vale uma religiosidade intrínseca e comprometida, que transitou comigo diferentes estágios da vida. Para além da externalidade sentimentalista de uma fé de balcão, percebo o elo entre o sentido da vida e a agora sentida presença de Deus em meio a assíduas perdas pessoais: a pele não é a mesma, a perna fraqueja, a caneta virou teclado, da profissão vou me despedindo. Sem penas ou pesares, assumo novas condições e me surpreendo mais orante, meditante, contemplativa, pensamento e coração elevados.

Aos poucos me desfaço das capas dessa sociedade viciada no consumo individualista, na competição desvairada, na descrença conveniente. Não fujo, enfrento as mudanças nos costumes e comportamentos com uma autocompreensão assustadora. Quem sabe seja esse exatamente o tempo da aceitação responsável, de encorajar a liberdade nos outros, de viver mais leve, porque também a fé amadurece se a alimentamos e não guardamos Deus na gaveta.

Para O tirarmos desse ostracismo e refletirmos de forma mais pausada sobre o Seu significado, demos um tempo para nós: qual é o período em que me encontro? O que tem mudado? Como reajo às indagações sem respostas? Vamos juntos nesta trilha: Compreendo-me? Como me relaciono com os outros? E com Deus? Que espaço tem o mundo do trabalho para mim? E a natureza? Fica a aposta que, com certeza, você se fez: a espiritualidade é uma busca interior. Até lá. Voltaremos.

  

Silvia Maria de Araújo

Socióloga, professora sênior da UFPR

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