Nova história… revista velha – Boletim nº 87 – Maio 2012
Fechei a gaveta. Levantei-me e olhei a sala demoradamente. Eu já não lhe pertencia. Nem ela a mim. Faltavam dez para as cinco da tarde. Na parede, a folhinha lembrava o fim da primavera: segunda-feira, doze de dezembro de 2005.
Fechei também a janela, tranquei a porta e saí para o sol. Lá fora, o mundo me esperava havia cerca de cinquenta anos. Do topo da escadaria, contemplei o céu, as nuvens, o horizonte… Vida, vida, cá estou pra te recomeçar. Saí de mãos vazias, caberia a elas, agora, construir o novo trajeto. Nenhum sentimento de perda, nenhuma tristeza. Apenas a leve percepção de dever cumprido e etapa vencida. Como se acabasse de ler e fechar o livro da minha própria existência.
Na manhã seguinte, virei a “folhinha” para um novo dia e pulei fora daquela história enfadonha de gente grande e sisuda. Caí feito fruto maduro entre as páginas de uma velha revista em quadrinhos com todas as figuras para serem escritas. Eu era o personagem central: um aposentado, ingressando finalmente no mundo de fantasias e liberdade com o qual toda criança sonhou um dia.
Em meu primeiro passeio pelas ruas pacatas de uma Cidadezinha qualquer, naquela história que eu deveria escrever, topei com um velho e simpático senhor debruçado na janela de uma das muitas casas sem eira, nem beira, nem jardins. Foi fácil reconhecer a figura, por demais conhecida e venerada: Carlos Drummond de Andrade. Nem mais, nem menos! Já sabia o que ele iria falar, mas antecipei-me e devolvi-lhe a própria pergunta que viria:
– E agora, Drummond? A festa acabou… O que me diz? Vai ser gauche na vida?
Mas o meu respeitável amigo e sábio conselheiro rasgou em seu rosto um sorriso faceiro e indecifrável. Um sorriso que mostra a experiência de quem tem as respostas, de quem andou à frente pelos caminhos. E com o olhar perdido pelas calçadas e o sorriso ainda estampado à meia-boca, balbuciou:
Casas entre bananeiras
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar.
Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar… as janelas olham.
Mas antes que ele pudesse concluir seu próprio poema, eu me antecipei, novamente:
Eta vida besta, meu Deus!
Que estranho recomeço: quem me mostrou a terça-feira 13 – meu primeiro dia de vida – não foi a antiquada folhinha da parede, mas um moderníssimo tablet: ao invés dos meus balões e bolinhas de gude renasci maduro, numa era de alta tecnologia, aos moldes de “O estranho caso de Benjamin Button”. Não mais calças curtas, mas bermudas; não mais descalço, mas tênis ou chinelos; não mais camisas confeccionadas com carinho pela Dona Helena, mas camisetas estampadas e coloridas. Cadê as outras crianças, o Lula, o Dindinho, a Marli, a Ema, o Toio, o Jujuba? Provavelmente escondidos por trás das barrigas avantajadas, bigodes cerrados, cabelos ralos e retintos… E eu, que dizer de mim? Deixemos pra lá! Afinal, àquelas alturas eu era uma criança recém-nascida, tentando aprender os primeiros passos e caminhos pelos quais não me atrevi em minhas escolhas infantis. Tive a certeza de que o meu caro Drummond havia sutilmente escancarado a visão daqueles que observam a vida de dentro de seus aposentos. De qualquer forma, aquele não era o meu caso, eu havia assumido um compromisso comigo mesmo quando criança. Agora não haveria de decepcionar a mim mesmo. Muito menos aquela criança crédula e paciente que soubera esperar décadas e décadas, na certeza de que eu haveria de cumprir minhas promessas.
Os primeiros tempos foram cruéis: o desligamento do sobrenome da Empresa, a autoaceitação da condição de aposentado e a própria escolha e definição dos projetos futuros. Percebi que as escolhas nessa fase da infância “buttônica” são igualmente difíceis. Se antes tivemos menos opções e muitas restrições, agora o quadro se inverte e o fator tempo se agiganta. Em minha experiência pessoal, percebi que a vida não é movida a perguntas e respostas, mas por insights e percepções; é feita de uma sequência de oportunidades e escolhas – múltiplas escolhas – cujo resultado final é você, somos nós. Entendo hoje que a grande limitação sempre esteve vinculada ao autoconhecimento ou desconhecimento. Como posso entender o que é bom pra mim se não sei exatamente quem eu sou? Quando experimento uma fruta diferente, só depois de degustá-la é que posso concluir se é boa ou não. Mas quando se decide, aos dezesseis anos, estudar agronomia ou mecânica… Fruta? Joga-se fora, se ruim. Mas… carreira? Não se pode jogar pelos caminhos a casca dourada e inútil das horas, como queria Quintana; pode ser tarde demais para ser reprovado…
E foi nessa “reencadernação” que me propus a seguir os passos do autoconhecimento. Passos gratificantes, imprescindíveis, inadiáveis e altamente compensadores. Esse deveria ter sido o papel prioritário da família, da igreja e da escola. E não foi por falta de avisos: “Conhece-te a ti mesmo” parece ter sido a inspiração para a filosofia de Sócrates. A partir desses alicerces socráticos, fui descobrindo minhas múltiplas facetas como se eu próprio fosse toda uma família. Uma família feliz, integrada, ciente cada vez mais de suas qualidades e limitações. Com esse entendimento, fomos nos acertando e distribuindo atividades e tarefas: para o poeta, para o músico, para o filósofo, para o físico, para o professor, para o radialista, para o pesquisador. Tarefas para todos, cada qual fazendo o que sabe e gosta. As horas de lazer, deixamos para o preguiçoso que até disso reclama. Mas é um bom sujeito! Vive cantando uma só canção, do Toquinho e Vinícius:
E lá vou eu…
Paro aqui, paro acolá.
E lá vou eu…
Como é duro trabalhar.
E assim, do seio desta família fictícia, inverossímil e, não obstante, tão real como eu mesmo sou, aos dois anos e oito meses (às 8:08 horas do dia 8/8/08) nasceu a Via Láctea Fm (www.vialactea.fm), um projeto destinado a pesquisar, resgatar, divulgar e incentivar a composição de músicas e versos de boa qualidade, com ênfase para a MPB. Aos seis anos de idade, nossa “equipe” lançou “As Orelhas do papel – Versos e reflexões”, um livro composto de poesias, letras de canções, contos e reflexões escritos ao longo da vida – quando ainda nem nos conhecíamos – numa tentativa de transmitir a experiência acumulada ao longo dos tempos. Essa foi a experiência mais feliz e enriquecedora: ao reviver e analisar as passagens marcantes, revivi-as com olhos adultos e mente mais aguçada e analítica. O inusitado, para mim, foi que, ao tentar fazer com que outras pessoas aprendessem com minhas experiências, erros e acertos, o grande aprendiz fui eu mesmo, mais uma vez. Ensinem para aprender! Faz algum sentido para você? Para mim, faz.
Novos passos estão pela frente. Já percorri décadas de estradas, agora quero as décadas de atalhos que deixei para trás. Sei que virão novos personagens e terei que atribuir-lhes novas tarefas. Eu já os aguardo com ansiedade, carinho e braços abertos. Como é bom aprender-se e gostar-se! A vida toda procurei entender o mundo olhando-o pela janela e segui caminhos que me apontaram. Não sabia que estava cometendo o erro mais elementar: o mundo é uma grande metamorfose, depende de quem o olha. Se quem o olha é o poeta, o mundo é o poema da criação; se o físico, uma complexa fórmula gravitacional; se o saudosista, uma belíssima sequência do que se foi. Se somos vários, temos que saber com que olhos o vemos: olhos de tristeza, de alegria, de entusiamo ou… fechados. É uma outra percepção! Mas se não soubermos observá-lo, o mundo será sempre uma quimérica ilusão de ótica. Salve Sócrates: “Conhece-te a ti mesmo!”. Mas olhando pra dentro, como aconselha Paulinho Nogueira, e não pelas janelas e peitoris:
… E, logo de manhã,
Olhar bem dentro de você,
Nas coisas como você vê,
Duvidar então do que querem
Fazer você olhar, fazer você ouvir,
Fazer você pensar…
(Versos de Simplesmente, de Paulinho Nogueira)
José Carlos Duarte Pereira
jcdpereira@uol.com.br
Linda e eloquente a crônica. Vou enviar a amigas aposentadas.
Saudações.
Olá Marilda
Grato pelo contato e que bom que gostou do artigo. Pode divulgar a seus amigos aposentados ou em fase de transição, mas é um belo depoimento.
Tudo isto é uma grande ilusão …
Obrigado, caro Armelino, por mais esse incentivo. Obrigado mesmo!
Zé
Prezado senhor:
Apesar de não conhecê-lo precisava dizer-lhe que acabei de deliciar-me com a leitura do texto que acabou sendo o Boletim 87, de Maio/2012. Como acompanho “religiosamente” todos os boletins vindos do “DESaposentado” e sempre tem bons textos, tomei a liberdade de parabenizar-lhe pelo texto que (penso eu) escreveu. Por que? Porque sou candidato a logo ali adiante tornar-me um “desaposentado”. E quero fazê-lo para continuar sendo feliz. Por isso preciso me preparar bastante e estou em fase de prestar atenção em tudo que vejo relacionado… Oxalá eu consiga, um dia, expressar-me de forma um tanto parecida. Que legal!
Abraço.
Caro Armelino,
Gostaria de registrar que adoro os textos que você nos brinda nos seus boletins. Trabalho com pessoas que estão se preparando para “desaposentar-se” , bem como estou muito perto de fazer o mesmo. Não apenas leio, como também utilizo no meu trabalho e recomendo o seu site e o seu livro para todos.
Abs,
Maria Lucia
Caro Armelino, texto muito bom. Novamente nos faz refletir sobre esta nova fase de nossa vida, no meu caso já há quase 12 anos. Tenho realmente procurado fazer o melhor possível, mas sempre existe erros e acertos. mas é principalmente com os erros que acabamos nos aperfeiçoando.