O operário em construção – Tema de Vinicius de Moraes – Boletim nº 20 – Outubro 2008
De uma parceria como essa, ainda que não consentida nem autorizada, só pode vir coisa boa! Se não pelo texto, ao menos pelo tema! E por falar em tema, lembro-me perfeitamente de uma aula de Português quando eu cursava o segundo ano do Científico. Era dia de prova e a Professora nos pediu que escrevêssemos sobre “Como posso melhorar o mundo?”. Até hoje não sei se ela tinha consciência da tarefa que nos havia passado: consertar o mundo em apenas cinqüenta minutos. Foi um nó na cabeça, nunca me esqueci. Agora o meu amigo Armelino me convida para escrever sobre minha experiência pessoal de aposentado. Por certo também não imagina a confusão que me arrumou. Para tal, eu me propus a analisar e traduzir o que até então havia me limitado a viver, sem quaisquer questionamentos. Refleti sobre trabalho, remuneração, aposentadoria e outras tantas coisas para apresentar algo consistente ao mestre de uma área que não é a minha. Conceitos. Era o que eu buscava para essa análise. Por que, tão cedo, eu deixava as bolinhas de gude, pipas e piões para ir à escola? Por que entrava na sala de aula quando tudo o que queria era ficar no recreio jogando futebol com bolas de meia? Por que a faculdade e não o violão, a música, a poesia e as serenatas? Por que a busca de um emprego se ele me roubaria o tempo para as coisas das quais eu mais gostava e me arrancaria da terra em que vivi, do convívio com os amigos mais antigos? “Olhai os lírios dos campos, eles não tecem nem fiam”, disse, um dia, o Mestre. Mas eu não era um deles, nem tampouco uma das aves do céu. Tinha que saber o que queria ser quando crescesse…
Cresci! Aprendi, com o tempo e com a vida, a gostar do trabalho, ferramenta imprescindível para a sobrevivência e a viabilização dos meus modestos projetos de futuro. Creio que desenvolvi pesquisas de boa qualidade, inéditas e de ponta, na minha área. Mas às vezes me pergunto o que teria sido de mim caso não fossem as limitações financeiras e a educação que recebi dos meus pais. Teria eu trabalhado todo esse tempo ou estaria, ainda, empinando pipas no meio da rua?
Não consegui concluir absolutamente nada nessa tresloucada e atabalhoada busca por conceitos. Mesmo o Aurélio não me sugeriu nenhuma linha de raciocínio. Curiosamente, quando consultei a palavra “aposentar”, não li a palavra trabalho em nenhum instante. Como não pretendo me especializar nesse tema, fico com o conceito doméstico e simplista de que trabalhar é preciso. É sempre preciso: mesmo para empinar pipas é preciso, antes, construí-las. Nessa involuntária incursão por praias alheias, percebi que a remuneração de que preciso e que tenho hoje fui eu mesmo quem viabilizou, ao contribuir durante tantos anos para o INSS e para a Ceres. Assim, sou agora eu mesmo quem me pago. Ceres e INSS apenas administram o que já é meu. Em outras palavras, descobri que sou chefe de mim mesmo e que trabalho para a minha própria empresa, ou melhor, Empresa! Vejam só: a aposentadoria fez-me Chefe, Operário e Patrão, a um só tempo. Uma Trindade que, se não for santíssima, é, no mínimo, bem-vinda e abençoada!
Com essa percepção inusitada, outras foram se seguindo e desfraldando novas bandeiras. “As visões se clareando”, como diria Vandré. Descobri que esse meu novo chefe (ou melhor, Chefe) é um cara legal, inteligente, compreensivo, tolerante e… modesto (quer mais?). Vê em mim os defeitos que antes eu não via e que, se os chefes anteriores (incompetentes!) viram, não corrigiram. Agora sim, creio que posso melhorar. Recebo “feed back” a todo instante. E, confesso, na maioria das vezes, nada agradáveis. Mas sempre construtivos.
Há tanto pra conhecer desse cara, nessa nova Empresa que vislumbrei maravilhado! Tenho até receio de que a aposentadoria final chegue antes que eu possa concluir essa longa e emocionante empreitada. Outro dia, por exemplo, estava em minha primeira viagem marítima, em regime “all included”. Nada de moderação ou parcimônia. Entre um drinque e outro, eu me perguntava se havia feito jus a toda aquela mordomia oportunizada pelo meu salário enquanto Pesquisador da Embrapa, se os conhecimentos gerados por mim haviam sido úteis à ciência e à sociedade e coisas dessa natureza. Sempre me angustiou a idéia de que pudesse ter sido um peso social. E foi nesse clima que, num relance, deparei com o inédito, mais uma vez: percebi que era dono de tudo aquilo que me cercava. Todos ali, exceto os turistas como eu, eram meus funcionários. Havia centenas deles trabalhando porque eu estava ali. Foi fácil entender que a abrangência dessa minha Empresa transcende todos os limites da imaginação. Pelo menos da minha. Compreende segmentos os mais variados possíveis, como construção civil, indústria automobilística, farmacêutica, agronegócios, turismo, mercado de ações, entre tantos outros. Ao pagar meus impostos religiosamente, tornei-me também co-proprietário de todas as instituições públicas e patrão de seus funcionários, desde os mais humildes e respeitados garis até os mais influentes e graduados dirigentes, políticos e magnatas. Até o Senhor Presidente insiste em trabalhar para mim! Em algum nível, meu dinheirinho, parco, mas honesto, alimenta e impulsiona todas as economias e instituições, gera empregos, tecnologias e promove o desenvolvimento. Foi uma visão bonita, inebriante, aos moldes de “O operário em construção”, do Vinicius de Moraes. Quem não conhece?
Perplexo, vejo agora minha Empresa ganhando, aos poucos, as dimensões de toda a Via Láctea: em cada canto que se lança o olhar, descobre-se uma nova luz e, mesmo quando as estrelas são as mesmas, seus brilhos são sempre diferentes, na cor, na intensidade ou na forma como observamos. Às vezes confundem-se com os pirilampos, num colorido e alegre pisca-pisca, à espera que o dia amanheça. Mais perplexo ainda, olho para mim e me vejo, de novo, de calças curtas no meio da rua, a soltar pipas e rodar piões. O mundo inteiro ao meu redor, sem paredes nem fronteiras. O tempo à minha frente, sem limites. Foram necessários 25 anos de estudo, dois Mestrados, um Doutorado, 38 anos de trabalho e 63 anos de vida (meu mini-curriculum!) para construir esta nova Empresa. Há todo um alumbramento nas relações estabelecidas nesta tríade: a música, a poesia e o próximo são os focos definidos. Felicidade é conseqüência, amor é requisito, saúde é ferramenta. De que mais a gente precisa? Ganha-se para cultivar e difundir o belo e para levar alegria, às vezes amparo e conforto, a quem necessita. Só quem testemunhou pode definir quanto é gratificante ouvir aquela senhorinha, olhos brilhantes, soro nas veias, agradecer depois de ouvir “Carinhoso”, de Pixinguinha e João de Barro: “Vocês foram maravilhosos!”. Fomos e somos, todos somos! Há tanto céu para se descobrir, basta olhar para o alto e refletir…
José Carlos Duarte Pereira
Engenheiro Agrônomo, pesquisador aposentado da Embrapa