A propósito de política e políticos – Boletim nº 46- Agosto 2010
Um padre belga missionário no interior da Bahia, empolgado em debelar doenças endêmicas da comunidade de diversas capelas, traquejou um plano e o colocou em prática. Arranjou um microscópio e reuniu o povo. Explicou como funcionava o aparelho e sua lente de aumento. Acrescentou que dependendo dos cuidados com a higiene dos alimentos que ingerimos estamos sujeitos a uma próspera criação de vermes – hóspedes oportunistas a nos consumir por dentro. Tiram-nos a energia para o trabalho e o bem viver, disse ele, e que para demonstrar isso precisaria de um voluntário. Bastou anunciar e a Mariazinha levantou a mão. Ah! Coitada! Mal sabia o quanto ficaria na berlinda e tão cedo não seria esquecida. Coletado o material e preparada a lâmina laboratorial, o microscópio foi deixado à visitação pública e a fila cresceu. Todos queriam ver de perto (e aumentado) do que se tratava. Insólita foi a reação: mulheres, homens e crianças passavam pela voluntariosa moça sem enxergar-se no exemplo e com desprezo diziam:
– Nossa, Mariazinha, quanto bicho você tem na barriga!
Em matéria de política, muitos de nós reagimos da mesma forma. Falta-nos memória e somos incapazes de fazer uma leitura crítica dos acontecimentos. Focamos um fato e o descolamos do conjunto; vemos a árvore, não a floresta. Temos dificuldade em reconhecer-nos nos outros e somos inclinados a dispensar a corresponsabilidade do nosso voto e da nossa omissão política.
Conversas em diferentes momentos com diferentes pessoas levantam a questão da corrupção, um fenômeno endógeno no Brasil, quiçá no mundo… do poder político, com certeza. Esquecemos facilmente dos rombos na previdência, dos roubos descarados nos cofres públicos, das gangues de colarinho branco, dos poderes políticos corrompidos e interdependentes em todas as instâncias, pois onde há corruptos há os que corrompem e o discurso da ética periga virar mais uma ideologia. Corruptos e corruptores são os lados da mesma moeda.
Esquecemos a história mal contada pela História Oficial contida nos livros didáticos brasileiros de outras épocas. Mudou? Se mudou me perdoem os autores historiadores recentes, mas a imprensa escrita e falada, esta não mudou. Continua a fazer a cabeça dos leitores desavisados e, sobretudo, da maioria dos telespectadores, cumprindo à risca a sua missão de instituição social formadora da opinião pública pela ótica dos poderosos, é claro. Salva a situação a propalada liberdade de imprensa, preservada em muitos casos, denuncia e age em prol da transparência, ajuda a apurar os fatos, embora seja, algumas vezes, instrumento para a armação de ciladas, confundindo as provas.
Assim, as nossas conversas rolam e se desenrolam no plano do hoje e só do hoje. Que barbaridade, nunca se roubou tanto! Vergonha nacional políticos dando o golpe! Governo corrupto, é só ligar a televisão e um mar de lama invade a nossa casa, a nossa mente, antes não era assim! Escuto o queixume e não me importo muito com o personagem ou a autoridade assuntada, nem qual é o governante de plantão. Concentro-me no nosso fazer política maneiroso e personalista. Escuto, mas não tenho sangue de barata, uma hora interrompo a conversa de mão única e banalizo tudo, apelo para o argumento genérico de corruptos serem todos os políticos. Com raras exceções, não erramos ao pensar assim.
Lembro-me de histórias da política recente, outras do Brasil colonial, da república do século passado, recheada de malas de dinheiro e autoritarismo. Evoco funções olvidadas do Ministério Público e da Polícia Federal, onde algum bafejo fresco tem entrado em tempos de democracia, nestes anos 2000. Precisamos nos acostumar a conviver na democracia com o bem e o mal, onde a compra de favores, a predominância de interesses de poucos, o desvio de verbas têm necessariamente de aparecer. Versões não convincentes de histórias mal contadas acometem, infelizmente, homens e mulheres de diferentes partidos e tendências políticas. As investigações (quando existem) apenas mexem e deixam o mal odor exalar dos fatos. Como se não bastasse, a decorrência perversa da corrupção (e responsável por sua procriação) tem sido a impunidade em todos os níveis e tempos.
Associo corrupção e espoliação. Com todo o respeito ao umbigo da civilização ocidental, a uma parcela do patrimônio da humanidade, fato é que a riqueza artística, admirada na Europa, fez-se graças à mão de obra escrava, africana e indígena, e à exploração do solo e subsolo das Américas Central e do Sul. Mas para que ir tão longe ao tempo e espaço, se ouvimos em outras palavras a frase de efeito da nossa incapacidade de análise? Talvez, por isso, vivamos um estado contínuo de corrupção no refrão do povo daquela comunidade do sertão baiano:
– Nossa, Mariazinha, quanto bicho você tem na barriga!
Silvia Maria de Araújo
Socióloga, Professora Sênior da UFPR
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